ATORES, INTERESSES E IDEIAS EM DISPUTA NO SUBSISTEMA DA POLÍTICA NACIONAL DE HABITAÇÃO SOCIAL NO BRASIL


ACTORES, INTERESES E IDEAS EN DISPUTA EN EL SUBSISTEMA DE LA POLÍTICA NACIONAL DE VIVIENDA SOCIAL EN BRASIL.


ACTORS, INTERESTS, AND IDEAS IN DISPUTE WITHIN THE SUBSYSTEM OF THE NATIONAL POLICY FOR SOCIAL HOUSING IN BRAZIL



Alexandre José ROMAGNOLI1

e-mail: alexandre.romagnoli@ifsp.edu.br


Carla Gandini Giani MARTELLI2

e-mail: carla.martelli@unesp.br


Como referenciar este artigo:


ROMAGNOLI, A. J.; MARTELLI, C. G. G. Atores, interesses e ideias em disputa no subsistema da Política Nacional de Habitação Social no Brasil. Teoria & Pesquisa: Revista de Ciência Política, São Carlos, v. 33, n. 00, e024012, 2024. e-ISSN: 2236-0107. DOI:

https://doi.org/10.14244/tp.v33i00.1099


| Submetido em: 19/02/2024

| Revisões requeridas em: 16/05/2024

| Aprovado em: 12/09/2024

| Publicado em: 11/12/2024



Editora:

Profa. Dra. Simone Diniz

Editor Adjunto Executivo:

Prof. Dr. José Anderson Santos Cruz


1 Professor EBTT, da área de gestão, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo - IFSP, Campus Avaré. Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - Unesp, e Mestre pela Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Possui Bacharelado em Administração pela Unesp.). membro do INCT Participa (Processo: 406630/2022-4, INCT- Participa).

2 Livre-Docente em Ciência Política (UNESP), com Doutorado em Sociologia (UNESP) e Mestrado em Antropologia Social (USP). Docente e pesquisadora no Departamento de Ciências Sociais da UNESP-Araraquara, líder do GEPPADE/CNPq e membro do INCT Participa. Pesquisa temas relacionados à democracia, participação política, instituições participativas e políticas públicas).

Teoria & Pesquisa: Revista de Ciência Política, São Carlos, v. 33, n. 00, e024012, 2024. e-ISSN: 2236-0107. DOI: https://doi.org/10.14244/tp.v33i00.1099 1

Atores, Interesses e Ideias em Disputa no Subsistema da Política Nacional de Habitação Social no Brasil


RESUMO: Este artigo tem como objetivo principal identificar a influência de atores e ideias na conformação da Política Nacional de Habitação Social durante o período de 1987 a 2021. Como referencial teórico, empregou-se o Advocacy Coalition Framework (ACF). O estudo, de tipo qualitativo, utilizou-se de um vasto conjunto de dados analisados através da Análise de Conteúdo e auxílio do software NVivo®. Como resultado, foram identificadas três coalizões de defesa influentes no subsistema da política: Coalizão da Moradia Popular (CoMP), Coalizão Desenvolvimentista da Construção Civil (CoDCC) e Coalizão da Financeirização da Moradia (CoFM). A CoMP, apesar de alcançar importantes vitórias durante os anos de 1987 a 2005, com a consolidação de suas crenças nos processos decisórios desse período, passou por progressivo enfraquecimento, de 2009 a 2021, não reunindo capacidade de influência suficiente para alterar a lógica econômico-financeira, associada a crenças defendidas pela CoDCC e CoFM, que majoritariamente definiram os processos decisórios seguintes.


PALAVRAS-CHAVE: Políticas públicas. Política habitacional. Habitação social. Atores e ideias.

Advocacy Coaliltion Framework.


RESUMEN: Este artículo tiene como objetivo principal identificar la influencia de actores e ideas en la conformación de la Política Nacional de Vivienda Social durante el período de 1987 a 2021. Como marco teórico, se utilizó el Advocacy Coalition Framework – ACF. El estudio, de tipo cualitativo, se basó en un amplio conjunto de datos analizados mediante el Análisis de Contenido y con la ayuda del software NVivo®. Como resultado, se identificaron tres coaliciones de defensa influyentes en el subsistema político: la Coalición de Vivienda Popular (CoMP), la Coalición Desarrollista de la Construcción Civil (CoDCC) y la Coalición de la Financiarización de la Vivienda (CoFM). A pesar de lograr importantes victorias durante los años 1987 a 2005, con la consolidación de sus creencias en los procesos de toma de decisiones de ese período, experimentó un debilitamiento progresivo desde 2009 hasta 2021, sin reunir suficiente capacidad de influencia para cambiar la lógica económico-financiera, asociada a las creencias defendidas por la CoDCC y la CoFM, que en su mayoría definieron los procesos de toma de decisiones siguientes.


PALABRAS CLAVE: Políticas públicas. Política habitacional. Vivienda social. Actores e ideas. Advocacy Coalition Framework.


ABSTRACT: This article aims to identify the influence of actors and ideas in shaping the National Social Housing Policy from 1987 to 2021. The study employs the Advocacy Coalition Framework (ACF) as its theoretical framework. Through a qualitative approach, the research analyzed a comprehensive data set using Content Analysis techniques with the aid of NVivo® software. The findings identified three influential advocacy coalitions within the policy subsystem: the Popular Housing Coalition (CoMP), the Construction Industry Development Coalition (CoDCC), and the Housing Financialization Coalition (CoFM). The CoMP achieved significant victories between 1987 and 2005, consolidating its beliefs within the decision-making processes of that period. However, from 2009 to 2021, the coalition experienced a gradual weakening, lacking the influence to alter the economic-financial logic advocated by the CoDCC and CoFM. These latter coalitions predominantly shaped the subsequent decision-making processes.


KEYWORDS: Public policies. Housing policy. Social housing. Actors and ideas. Advocacy Coalition Framework.


Teoria & Pesquisa: Revista de Ciência Política, São Carlos, v. 33, n. 00, e024012, 2024. e-ISSN: 2236-0107. DOI: https://doi.org/10.14244/tp.v33i00.1099 2

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Introdução


Este trabalho insere-se no campo dos estudos das políticas públicas e tem como tema a Política Nacional de Habitação Social do Brasil. Seu objetivo é analisar as coalizões formadas ao longo de mais de trinta anos (1987-2021) e o potencial de sua interferência nos processos decisórios dessa política.

O enfoque em atores e ideias no policy making conduziu-nos ao Advocacy Coalition Framework (ACF). O modelo, criado por Sabatier e colaboradores (1993, 1999, 2007), não se limita aos aspectos institucionais das políticas públicas, mas considera, sobretudo, a relevância dos atores e suas ideias (crenças) nos processos decisórios governamentais.

Assim, o artigo busca contribuir com os estudos sobre Política Habitacional no Brasil, contando sua história a partir do enfoque na movimentação dos atores no subsistema da política, destacando a formação de coalizões e a influência que tiveram nas tomadas de decisões do setor. Além de vislumbrar uma forma diferente de conhecer a conformação da Política Habitacional Brasileira, enfatizando a dinâmica política materializada nas disputas entre atores, seus interesses e suas crenças, este trabalho testa a aplicação do modelo do ACF ao caso brasileiro.

Para fazê-lo, recorre-se a um recorte temporal de mais de trinta anos, destacando alguns marcos que foram essenciais para a institucionalização da Política de Habitação Social no Brasil. A pesquisa inicia-se com a Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, e com a Carta Constitucional de 1988, passando pelo Estatuto da Cidade (Lei n.º 10.257/2001), Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (Lei n.º 11.124/2005), Programa “Minha Casa, Minha Vida” (2009) e encerra-se com o Programa “Casa Verde e Amarela” (PCVA), em 2021. Esses momentos são justificados pelo pressuposto de que o desenho das políticas públicas, expresso em Programas Governamentais, leis e todo tipo de normativa, traduz as crenças das coalizões predominantes nos momentos em que cada marco foi criado (Sabatier; Jenkins-Smith, 1993).

O artigo está dividido em mais cinco seções, além desta introdução. Na segunda e terceira seção, falamos do modelo que embasou a pesquisa e dos passos metodológicos. Na quarta, apresentamos as três principais coalizões que conformaram a Política Nacional de Habitação Social no Brasil. Na quinta, procuramos mostrar a movimentação e influência de cada coalizão (seus atores e ideias) durante o período recortado, ou seja, da Constituição de 1988 ao Programa Casa Verde e Amarela (PCVA). A última seção traz algumas considerações finais.

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Atores, Interesses e Ideias em Disputa no Subsistema da Política Nacional de Habitação Social no Brasil


O Advocacy Coalition Framework


O Advocacy Coalition Framework (ACF) compreende a formulação das políticas públicas como o resultado do embate político entre coalizões, formadas por diversos atores, individuais e coletivos, públicos e privados, que compartilham crenças e ideias e ocupam determinado subsistema com o propósito de influenciar uma certa questão de política pública (Sabatier; Weible, 2007).

O modelo trabalha com as seguintes premissas: o subsistema da política é a principal unidade de análise; os vários atores presentes no subsistema podem se agregar em coalizões; o recorte temporal de observação é de longo prazo (pelo menos uma década); e o desenho das políticas públicas é interpretado como a tradução das crenças das coalizões (Weible; Sabatier; Jenkins-Smith; Nohrstedt; Henry; Deleon, 2011).

O conceito de subsistema utilizado por Sabatier e parceiros abrange os atores que desempenham papéis importantes na formulação e implementação das políticas públicas, bem como atores que atuam na geração, disseminação e avaliação de ideias relacionadas às políticas (Araújo; Silva Junior, 2022). Os subsistemas podem incluir desde oficiais públicos de diferentes níveis de governo, até representantes do setor privado, membros de organizações sociais, da mídia, acadêmicos, pesquisadores, think tanks, etc., que, conectados pelo interesse em determinado tema, buscam influenciar as decisões governamentais (Jenkins-Smith; Nohrstedt; Weible; Ingold, 2017).

O referencial teórico das coalizões de defesa está baseado na ideia de que os indivíduos defendem posições a partir de um sistema de crenças que reflete valores, ideias e percepções sobre o mundo e as políticas públicas. O conceito de crença é composto por três níveis, sendo o primeiro relativo às crenças profundas (deep core) que são consideradas as mais sólidas e estão relacionadas com as suposições normativas e ontológicas relativas à própria natureza humana. No segundo estão as crenças de políticas públicas (policy core) que se relacionam com o posicionamento dos atores com relação à política pública do subsistema do qual pertencem. São consideradas pelos autores como a “cola” que une os atores em coalizões. Por fim, no terceiro nível, estão as crenças secundárias (secundary core), consideradas as mais operacionais e alvos frequentes de negociações entre os atores (Jenkins-Smith; Nohrstedt; Weible; Ingold, 2017).

Ainda que o foco do modelo esteja nos indivíduos e suas crenças, não ignora a existência e a influência de um contexto externo, composto pelos parâmetros relativamente estáveis e os eventos externos, como mostra a figura abaixo (Jenkins-Smith et al., 2017).

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Figura 1 – Diagrama do ACF


Fonte: Sabatier e Weible (2007).


Para conhecimento das coalizões e seus sistemas de crenças, destacamos ainda a importância da obtenção de recursos pelas coalizões. São seis as categorias de recursos: acesso à autoridade formal (posições-chave dentro da estrutura decisória da Política); opinião pública; informações; mobilização de tropas (mobilização pública); recursos financeiros e liderança hábil (Weible, 2006). Quanto mais recursos tem uma coalizão, mais poder possui para influenciar a formulação e mudança nas políticas públicas. No entanto, esses recursos não são estáveis e podem se alterar, e quando isso acontece há uma nova distribuição de poder entre as coalizões dentro do subsistema.


Materiais e Métodos


Para alcançar os objetivos deste trabalho, foram seguidas as orientações descritas no apêndice metodológico da obra de Sabatier e Jenkins-Smith (1993, p. 237- 256). Utilizou-se, como principal material de análise, 42 notas taquigráficas de audiências públicas realizadas durante a Assembleia Nacional Constituinte e pelas Comissões da Câmara dos Deputados e do


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Atores, Interesses e Ideias em Disputa no Subsistema da Política Nacional de Habitação Social no Brasil


Senado Federal; 56 atas das reuniões do Conselho das Cidades; 10 edições da Revista Brasileira de Habitação; além de documentos produzidos pelos atores e referentes ao processo de tramitação dos marcos legais, como emendas, pareceres de relatores, substitutivos dos projetos de lei e as leis aprovadas. Também foram realizadas entrevistas semiestruturadas com diferentes integrantes das coalizões identificadas na pesquisa.

Ao todo, foram sistematizadas onze estruturas de crenças que orientaram a organização dos atores em coalizões3. As crenças relacionadas a cada uma das coalizões, assim como aquelas identificadas nos marcos legais analisados, são apresentadas ao longo do artigo.

Para a construção do sistema de crenças, primeiramente, realizou-se um estudo aprofundado sobre a literatura especializada no tema da política habitacional. Em seguida, com o objetivo de adentrar o debate e identificar visões sobre a política pública em questão, realizou- se a leitura prévia de um conjunto de documentos que seria posteriormente codificado através do sistema de crenças montado. Por fim, como já mencionado, este trabalho inspirou-se no apêndice metodológico da obra de Sabatier e Jenkins-Smith (1993) e em renomados trabalhos com aplicação do ACF em políticas públicas brasileiras4.

De posse do sistema de crenças, iniciou-se o processo de codificação do material. Com o suporte do software NVivo®, foi possível identificar e registrar os atores relevantes (“quem falava”) e suas principais crenças (“sobre o que falava”) em cada momento. Em seguida, realizou-se a simulação de clusters com o objetivo de encontrar grupos com forte grau de semelhança, as coalizões.

As notas taquigráficas das audiências públicas e as atas das reuniões do Conselho das Cidades foram essenciais para a identificação dos atores, suas ideias e a frequência com que ocuparam arenas da política pública em questão. Já as edições da Revista Brasileira de Habitação e as entrevistas foram empregadas como forma de complementação e ratificação das ideias dos atores e das articulações que definiram as coalizões de defesa. Os documentos referentes à tramitação dos marcos legais foram apropriados como forma de acompanhamento das crenças, nas suas constantes entradas e saídas dos processos decisórios até, ao fim, com a consolidação no texto das normas. Por fim, a triangulação das audiências públicas com os documentos (governamentais e de grupos de interesse) e entrevistas constituiu base essencial para a pesquisa realizada.



3 O conjunto de crenças pode ser consultado integralmente na obra de Romagnoli (2023).

4 Dentre esses trabalhos, destacamos a obra de Araújo (2013) que desenvolveu um amplo sistema de crenças que contou com o crivo do próprio Sabatier. No mais, a autora realizou análises relacionadas ao tema urbano, o que permitiu traçar importantes relações com o sistema de crenças necessário para esta pesquisa.

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Atores, crenças e coalizões: o Subsistema da Política Nacional de Habitação Social


A Coalizão da Moradia Popular (doravante CoMP) tem sua primeira aparição pública registrada pela pesquisa durante a 15ª audiência pública da Assembleia Nacional Constituinte (DANC, 23 de jul. 1987). Desde o princípio, a coalizão apresentou, de forma muito clara, o conjunto de crenças que a orienta: defende que a moradia é um direito social, cabendo ao Estado a responsabilidade de garanti-la. Na sua visão, o principal problema da habitação social no país é a falta de acesso da população de mais baixa renda à cidade legal, e a solução passa pela implementação de instrumentos de regulação da terra e controle da especulação imobiliária para a garantia da função social da propriedade. A gestão democrática das cidades e a autogestão (sistema de mutirão) também despontam como crenças essenciais para a construção de políticas habitacionais.

A CoMP é composta por uma variedade de atores, representantes de diferentes entidades e organizações. Destacamos os seguintes atores como os principais, dada a frequência nas audiências públicas analisadas: Confederação Nacional das Associações de Moradores (CONAM), União Nacional por Moradia Popular (UNMP), Central de Movimentos Populares (CMP), Fórum Nacional pela Reforma Urbana (FNRU), Movimento dos Trabalhadores Sem- Teto (MTST), Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE), Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e Instituto Pólis.

Além da participação massiva de movimentos sociais de luta pela moradia popular na composição da coalizão, merece destaque a participação de arquitetos, urbanistas e instituições de ensino e pesquisa (pós-graduação). Esses especialistas ocuparam lugar de destaque na representação da coalizão e conferiram credibilidade ao grupo, dadas as informações empregadas no processo de defesa das crenças políticas.

A Coalizão Desenvolvimentista da Construção Civil (doravante CoDCC), recebe esse nome devido à forte visão economicista que apresentou sobre a política habitacional. Para esta coalizão, a política habitacional é essencialmente um instrumento de intervenção na economia que, via mercado da construção civil e o seu efeito em “cascata”, pode gerar aumento no número de emprego, renda e impostos para o Estado.

O posicionamento da coalizão está fortemente atrelado à importância do déficit habitacional. Defendem que todos precisam ter uma moradia e, para isso, faz-se necessário produzir novas unidades habitacionais. Neste contexto, também se insere a preferência do grupo por poucas limitações ao direito de propriedade. A respeito da intervenção do Estado na política

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de habitação social, a coalizão defende que essa intervenção ocorra pontualmente, de forma que não impeça a livre atuação do mercado no setor imobiliário. Essa crença se torna mais clara quando associada a outra referente à defesa de subsídios públicos para a população de mais baixa renda. A coalizão reconhece que a população pobre do país não consegue ter acesso ao mercado habitacional, fazendo-se necessária a intervenção do Estado para que essa população consiga adquirir os produtos disponibilizados pelas empresas do setor.

Os principais atores que compõem essa coalizão são: Câmara Brasileira da Indústria da Construção Civil (CBIC), Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais (SECOVI), Sindicato da Construção Civil (SINDUSCON), Associação Brasileira de Cohabs e Agentes Públicos de Habitação (ABC) e Fórum Nacional de Secretários de Habitação e Desenvolvimento Urbano (FNSHDU).

A Coalizão da Financeirização da Moradia (doravante CoFM) é identificada com maior clareza somente após o ano de 2019, juntamente com o início do governo Bolsonaro e, mais especificamente, com o lançamento do Programa “Casa Verde e Amarela” (PCVA). Recebe esse nome pelo fato de defender crenças que, assim como a CoDCC, estão associadas aos interesses do mercado, entretanto, com ênfase no favorecimento das atividades relativas ao Mercado Financeiro. O maior enfoque está no processo de expansão da transformação da moradia em um ativo financeiro de mercado.

A ideia da necessidade da aquisição da casa própria, destacada anteriormente como parte importante da narrativa empregada pela CoDCC, também está presente no discurso da CoFM. A moradia continua sendo tratada como um elemento crucial de capital político, que, neste caso, justifica a necessidade de endividamento dos indivíduos. No entanto, para a CoFM, existem outras formas de se conquistar a moradia, além da construção de novas unidades. O reconhecimento daqueles que estão à margem da legalidade e, consequentemente, do sistema financeiro, é uma dessas formas. Também é crença da CoFM a redução das responsabilidades do Estado (Estado Mínimo), promovendo, assim, o fomento à atividade privada na implementação da política pública. Para essa coalizão, não se deve interferir no direito de propriedade, e as decisões relativas à política devem ser tomadas por uma elite governamental. A regionalização também é um tema frequentemente abordado pela coalizão.

Como principais atores pertencentes a essa coalizão, destacam-se a Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), a Abrainc (Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias) e a ABECIP (Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança). Inclui-se


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também o Ministério do Desenvolvimento Urbano (MDR), que, de maneira clara, demonstrou preferência pelas crenças dessa coalizão.

Quadro 1 – Crenças das coalizões


CoMP

CoDCC

CoFM


Estado forte.

Intervenção do Estado apenas nas falhas de

mercado.


Estado Mínimo.

Visão da moradia como direito social. O problema é que não há acesso à cidade legal. A solução é a implementação de

instrumentos de

regulamentação urbana.

Visão economicista. O problema é a ausência de moradias adequadas (déficit habitacional). A solução é a construção de novas moradias.

Visão da moradia como um ativo financeiro. O problema é a incapacidade da população de acessar o mercado financeiro imobiliário. A solução é aumentar a securitização das

transações.

Ampla participação da sociedade.

Os recursos financeiros

devem vir de fontes públicas e privadas.

Decisões centralizadas na elite governamental.

Ampla atuação de Conselhos (consultivos e

deliberativos).

Setor privado é essencial para a solução dos

problemas de habitação.

Desconsidera a atuação de Conselhos.

Os recursos financeiros

devem vir de fontes públicas.

Admitem-se algumas

limitações ao direito de propriedade.

Os recursos financeiros devem

vir de fontes públicas e privadas.

O direito de propriedade

está condicionado à função social da propriedade.


Centralização na União.

Setor privado é essencial para a

solução dos problemas de habitação.

Municipalização.

O Plano Diretor é um documento técnico.

Devem ser evitadas limitações

ao direito de propriedade.

O Plano diretor é um pacto

político.

Centralização na União.


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Favorável ao sistema de autogestão.


Preocupação com as

especificidades regionais.

Desconsideração da relevância

do Plano Diretor Municipal.

Contrária ao sistema de

autogestão.

Fonte: Romagnoli (2023, p. 65-70).


Atores e ideias em disputa


Os resultados da pesquisa foram organizados em dois principais momentos: o primeiro, de 1987 a 2005, que ilustra o predomínio de crenças associadas à CoMP e a construção da base institucional para a política de habitação social; o segundo, de 2009 a 2021, que retrata o período de vigência de grandes programas habitacionais conformados, principalmente, por crenças ligadas à CoDCC e CoFM, com características fortemente mercadológicas.


A construção das bases institucionais da Política Nacional de Habitação Social


O tema da moradia é debatido durante a Assembleia Nacional Constituinte (ANC) através da Subcomissão da Questão Urbana e Transportes. Ao todo, realizaram-se vinte e dois encontros, dos quais doze foram audiências públicas com variados atores da sociedade civil. Destas doze audiências públicas, seis abordaram diretamente o tema da habitação.

Acerca dos atores que participaram deste primeiro momento de debate, destacamos as instituições de arquitetura e urbanismo, os movimentos populares através do MNRU (Movimento Nacional pela Reforma Urbana) e o empresariado. O debate em torno do direito de propriedade predominou nas audiências públicas, seguido pelo papel do Estado nesse processo e a garantia da função social da propriedade. É nesse momento, também, que a crença da gestão democrática das cidades é introduzida pelos atores da CoMP.

O posicionamento das coalizões é bastante claro durante todo esse período, entretanto, o acirramento entre CoMP e CoDCC, de fato, assevera-se na fase seguinte de produção do Anteprojeto da Subcomissão. Neste momento, foi aberta a possibilidade de participação direta à sociedade civil com a proposição de emendas aos constituintes. A CoMP, através de entidades de arquitetura e urbanismo, propõe a emenda n.º 63, que ficou conhecida como a Emenda da Reforma Urbana.

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A emenda, defendida no Plenário pela então diretora do Sindicato dos Arquitetos do Brasil, Ermínia Maricato, sintetizava o conjunto de crenças da CoMP e, consequentemente, apontava para a necessidade de instrumentos que regulassem a posse da terra e conferissem acesso à cidade legal a todos. Esta proposição da CoMP, obviamente, não foi bem recebida pelos atores da coalizão adversária que, na busca de pontuar sua visão contrária, expandiram o debate para além dos espaços constituintes.

O deputado constituinte Luis Roberto Ponte, destacado representante da CoDCC, não tardou em publicar seu posicionamento contrário à emenda em artigo na Folha de São Paulo5. De forma análoga, a FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) também se posicionou contra a emenda, sugerindo a exclusão do instrumento de usucapião na deliberação seguinte da ANC. A resposta veio prontamente com outros artigos na Folha, agora de autoria da Maricato. Se de um lado os atores representantes do empresariado afirmavam que a emenda tinha “estrábica visão de que o grande problema urbano está situado na posse da terra (...)”, Maricato rebatia com exemplos já conhecidos da experiência do BNH (Banco Nacional da Habitação) dos “conjuntos habitacionais ‘fora’ das cidades, na busca por terras baratas”.6

Por fim, a Constituição Federal (CF) de 1988 foi aprovada com um capítulo específico sobre a questão urbana, intitulado “Da política Urbana”, artigos 182 e 183. A inclusão, pela primeira vez, de uma seção dedicada à questão urbana em uma Constituição Federal, é considerada uma primeira importante conquista da CoMP. Nesse capítulo da CF é consolidada a crença relativa à função social da propriedade, ou seja, a prevalência da noção de que a propriedade deve atender aos interesses da coletividade. Destacam-se, também, outras crenças defendidas pela CoMP relativas aos mecanismos de controle da especulação imobiliária, como: o IPTU progressivo, a desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública, o parcelamento compulsório e a usucapião. Porém, é essencial compreendermos que essas vitórias da CoMP vieram acompanhadas de condicionantes propostos pela Coalizão adversária, a CoDCC (Romagnoli, 2023; Bassul, 2008).

A função social é prevista no art. 182, §2º: “A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” (Brasil, 1988, p.51, grifo nosso). Também, no caput do artigo 182, a política de


5 Acervo digital da Folha de São Paulo de 20/08/1987, p. A14. “A questão urbana na Constituinte” por Luiz Roberto Ponto.

6 Acervo digital da Folha de São Paulo de 27/08/1987, p. A10. “Terra urbana e a Constituinte” por Ermínia Maricato.

Acervo digital da Folha de São Paulo de 14/07/1988, p. A14. “O usucapião e a gafe da FIESP” por Ermínia Maricato.

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Atores, Interesses e Ideias em Disputa no Subsistema da Política Nacional de Habitação Social no Brasil


desenvolvimento urbano, executada pelo poder público municipal, fica submetida a diretrizes gerais fixadas em Lei. Diretrizes estas definidas em esfera superior à municipal. Em suma, a aplicação da função social é condicionada a dois processos legais que a antecedem: diretrizes gerais, que ainda deveriam ser criadas (o futuro Estatuto das Cidades), e o plano diretor, a ser definido pelas Câmaras Municipais.

Quanto aos instrumentos de regulação da especulação imobiliária, os condicionantes se repetem. Primeiramente, não há obrigatoriedade para os municípios na aplicação desses instrumentos. Em segundo lugar, a aplicação está, novamente, totalmente condicionada à existência de plano diretor e de lei federal regulamentadora (artigo 182, §4º da Constituição Federal). Apesar de o debate sobre a importância do planejamento na política urbana estar presente durante as audiências públicas da Assembleia Nacional Constituinte (ANC), não há, naquele momento, sua vinculação à função social da propriedade. Essa relação surge por meio de uma emenda do chamado Centrão, liderado informalmente pelo deputado Luiz Roberto Ponte, da CoDCC (Bassul, 2008). No que diz respeito à questão da usucapião, especificamente, na reta final da aprovação do texto, ela se torna alvo de uma emenda do deputado Francisco Carneiro (PMDB), destacado empreendedor imobiliário, que recebe total aprovação. O mecanismo é previsto na Carta, mas exclui sua aplicação aos imóveis públicos, limitando significativamente seu alcance.

O Estatuto da Cidade, por sua vez, é aprovado no ano de 2001 e se torna a lei n.º 10.257. A função social da propriedade, conquistada na Constituição Federal, é o tema central da lei e os instrumentos propostos constituem os caminhos para alcançá-la. Algumas crenças já apresentadas e defendidas desde a emenda n.º 63 por meio da CoMP, finalmente encontram o seu lugar no texto da lei. Destaque para o parcelamento, edificação e utilização compulsórias (caput do art. 5º), o direito de preempção, extremamente polêmico, com entradas e saídas do texto (caput do art. 25), o IPTU progressivo (caput do art. 7º) e a desapropriação com pagamento em títulos públicos (caput do art. 8º).

A crença acerca da principal visão sobre a questão da habitação social também aparece no texto. Prevalece a ideia que defende a moradia como direito social e que o problema seria a falta de acesso à cidade legal. Outro ponto forte da Lei n.º 10.257 é a participação popular que, além de garantida em diferentes momentos da lei, ganhou um capítulo específico denominado “Da gestão democrática da cidade” (Capítulo IV).

A CoMP obteve sucesso com a aprovação da Lei n.º 10.257/01 ao emplacar crenças que lhe são essenciais. Durante os vários anos de tramitação do Projeto de Lei, a coalizão participou

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ativamente das várias audiências públicas sobre o tema. Há também o registro de moções de apoio encaminhadas pelos seus diferentes atores distribuídos pelo país à Câmara dos Deputados7 e constantes negociações realizadas com os deputados alinhados com a coalizão adversária (Romagnoli, 2023; Grazia, 2003). Mas, certamente, um ponto essencial para a inserção das crenças da CoMP no processo decisório analisado está nas experiências locais organizadas pelos movimentos populares. Os mutirões realizados em São Paulo durante o governo de Luiza Erundina (1989-1992) se destacam nesse sentido.

No entanto, não se pode ignorar que o Estatuto resultou de onze anos de embates para sua efetivação, abrindo espaço para que outras ideias ganhassem relevância. A CoDCC, por exemplo, demonstrou sua força na tramitação da Lei: além da morosidade imposta ao processo por seus diversos atores (destacando, novamente, a figura do deputado Luiz Roberto Ponte, que “segurou” o projeto de lei sob sua relatoria na Comissão de Economia, Indústria e Comércio (CEIC) por mais de seis anos), crenças como a inserção da iniciativa privada na solução do problema habitacional, assim como os instrumentos de concessão onerosa do direito de construir (art. 28) e as operações urbanas consorciadas (art. 32), permaneceram no conteúdo da Lei.

Outro exemplo da destacada atuação da CoMP foi a criação do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), o primeiro Projeto de Lei de iniciativa popular do país, construído por meio da articulação de movimentos de luta pela moradia, com especial participação dos atuantes em São Paulo. Inicialmente, o PL n.º 2.710/1992 previa a criação do Fundo Nacional de Moradia Popular e o Conselho Nacional de Moradia Popular. O Fundo seria destinado ao financiamento e à implementação de programas habitacionais de interesse social para a população de baixa renda, conforme diretrizes definidas pelo Conselho Nacional. Entretanto, assim como o Estatuto da Cidade, a proposta popular levou um longo período, treze anos, para ser aprovada, passando, por conseguinte, por uma série de alterações.

A crença de defesa do acesso à cidade se manteve presente na versão final da Lei, com destaque para a previsão de diferentes formas de intervenção pelo Estado, uma forma de crítica ao modelo historicamente predominante de atuação através da construção civil. A Lei prevê a construção de novas moradias, mas também apresenta as possibilidades de urbanização de favelas, ação em cortiços, aquisição de material de construção, regularização fundiária, locação de interesse social, etc. (Art. 11).

7 É possível consultar o dossiê do Projeto de Lei n.º 5788/1990 através do portal da Câmara dos Deputados – Portal da Câmara dos Deputados (camara.leg.br).

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A autogestão também se insere na proposta como uma alternativa viável de política habitacional. Acerca dos recursos financeiros, inicialmente, o PL previa, quase que exclusivamente, a aplicação de recursos de fontes públicas para o fomento de políticas públicas de moradia para a população de baixa renda. Entretanto, logo no início da tramitação do projeto, com a sua passagem pela Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior (CDUI), o texto já passa a contar com outros fundos com necessidade de retorno atuarial. Ao fim, o que se identifica é que a CoMP cede nesse aspecto e a ideia que passa a predominar é a do emprego de um mix de recursos (públicos associados a privados). Nesse ponto, também se identifica claramente a entrada da iniciativa privada à proposta como uma alterativa para a solução do problema, mostrando que algumas crenças da CoDCC conquistaram seu espaço (Artigos 7º e 8º).

A participação popular, por sua vez, permanece consolidada no SNHIS. Há menção à democratização, controle social e transparência dos procedimentos decisórios (art. 4º, inciso I, alínea c), além de audiências públicas e conferências nos níveis estaduais e municipais (Art. 20). Nesse mesmo contexto, o Conselho Gestor do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) permaneceu deliberativo e ainda somou forças com o Conselho das Cidades (ConCidades), que também passou a integrar o Sistema.

A descentralização entre os entes da federação também é presente no texto do SNHIS. A novidade se dá com a necessidade de construção de Plano Habitacional de Interesse Social, com enfoque nas especificidades locais.

O SNHIS, que tramitou quase que totalmente em paralelo com o Estatuto da Cidade, também foi construído através da ampla e frequente atuação da CoMP que, além de construir o Projeto de Lei (PL) que originou o Sistema, ocupou fortemente as arenas de debate do subsistema (Romagnoli, 2023). Destacamos, nesse sentido, a relevância do momento político que conferiu aumento de recursos à coalizão e impulsionou a aprovação do PL.

No ano de 2003, inicia-se o primeiro governo Lula e, com ele, há mudanças significativas no cenário das políticas de habitação. Além da criação do Ministério das Cidades (MCidades) e do Conselho das Cidades (ConCidades), há a realização de Conferências Nacionais das Cidades, espaços institucionais que foram fortemente ocupados pelos atores da CoMP. O MCidades, particularmente, permitiu a entrada de importantes representantes da


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coalizão em posições-chave da política8. Identifica-se, nesse momento, a atuação da coalizão “por dentro” do Estado, pela via institucional, aumentando os recursos da “autoridade formal legal” (WEIBLE, 2006) do grupo, conferindo-lhe maior capacidade de influência.

Se o ano de 2005 encerra-se com a aprovação de instituições e instrumentos legais que, a princípio, indicavam potencial de gerar mudanças na estrutura das políticas de habitação social, o que se identifica, nos anos seguintes, é o surgimento de grandes pacotes habitacionais descolados desta possibilidade e desenhados com claro predomínio de crenças ligadas aos interesses de mercado.


Do Programa “Minha Casa, Minha Vida” ao “Casa Verde e Amarela”


Um dos principais pontos de destaque do Programa “Minha Casa, Minha Vida” (PMCMV), certamente, foi a previsão de considerável volume de recursos para área, oriundo do Orçamento Geral da União (OGU). Parte desse recurso era destinado, na forma de subsídios, para a população de mais baixa renda (de 0 a 3 salários-mínimos), indicando atenção a essa parcela historicamente negligenciada pelas políticas públicas de habitação do país.

A primeira versão do Programa prometia a construção de um milhão de novas moradias que, embora previsse subsídio integral para a população de zero a três salários-mínimos, que representava 90% do déficit habitacional do país, destinava a esse grupo apenas 40% das unidades previstas (400 mil unidades). Já para a população de seis a dez salários-mínimos, cerca de 2,4% do déficit, havia a previsão de 200 mil unidades – 25% do total. Fica clara a orientação mercadológica do Programa que priorizava o atendimento da população que se adequasse às condições de endividamento do mercado, favorecendo a sua expansão.

O PMCMV evidencia a crença de que a participação do setor privado na solução dos problemas de habitação social é essencial, sendo essa sua principal característica, assim como a principal crítica ao desenho da política escolhido pelo governo Lula. O entrevistado 1 (CoMP) destaca a relevância do Programa para a política habitacional, principalmente em relação à previsão de atendimento à população de baixa renda. Entretanto, afirma que o Programa concedeu protagonismo, de forma indevida, ao mercado. Por outro lado, o entrevistado 2 (CoDCC) defende a participação do mercado na estrutura do PMCMV como uma “virada de chave” na forma de conceber políticas habitacionais no país. Argumenta que a estrutura do


8 Ermínia Maricato assume a posição de Secretária-Executiva do Ministério, Raquel Rolnik a liderança da Secretaria Nacional de Programas Especiais e tem como chefe de gabinete Evaniza Rodrigues. Todos os nomes intimamente relacionados à CoMP durante os anos de análise realizada pela pesquisa.

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PMCMV, associada à participação do setor empresarial, trouxe ganhos de escala e agilidade para as políticas do setor.

As falas dos entrevistados se tornam mais claras com a explicação da operacionalização especificamente do atendimento da faixa 1. Para essa faixa, as unidades habitacionais eram produzidas pela iniciativa privada com recursos financiados pela CEF. Em seguida, os imóveis prontos eram vendidos às famílias que, com subsídios de até 96% do valor do imóvel, passavam a pagar mensalmente um valor de até 10% da sua renda familiar ou R$25,00, por um período de até dez anos. Os beneficiários eram selecionados pelos Municípios ou Estados por meio de cadastros habitacionais, e o contrato de financiamento do imóvel era firmado diretamente com a CEF. Em resumo, as construtoras definiam o terreno e o projeto dos empreendimentos, aprovavam-nos junto aos órgãos competentes e os vendiam integralmente para a CEF, livres de custos de comercialização e riscos de inadimplência dos futuros mutuários.

Sobre essa dinâmica presente no PMCMV, o entrevistado 3 (CoMP) comentou: o Programa “dava uma autonomia absurda para o construtor fazer o que quisesse. Ele comprava a terra distante do centro da cidade, fazia a construção da pior qualidade e não tinha ninguém que se responsabilizava”. Ainda sobre o assunto, o entrevistado 1 (CoMP), em tom de crítica, afirmou: “Ninguém perguntou para a pessoa que vai morar no empreendimento como é que ela queria morar, de que jeito ela quer morar, onde ela quer morar (...) ela tem uma única opção: ir ou não para o conjunto”.

Aos Municípios, coube o papel secundário de parceiro na implementação do Programa, bem como facilitador, ao ofertar contrapartidas de terras e isenções tributárias que favoreciam a adesão ao Programa. As decisões são concentradas na União e, mais especificamente, em um grupo estratégico do governo.

A análise do desenho do PMCMV permite identificar a presença de crenças predominantemente defendidas pela CoDCC, como: visão economicista, recursos financeiros oriundos de fontes públicas e privadas, a essencialidade do setor privado e a centralização decisória na União. No entanto, é importante destacar a inclusão da Modalidade PMCMV – Entidades (PMCMV-E), que contempla a crença favorável à autogestão na produção social de moradias, uma conquista diretamente vinculada à CoMP. Essa inclusão reflete a luta da coalizão para inserir algumas de suas crenças no maior pacote habitacional criado nos últimos anos. A modalidade “Entidades” integra a estrutura do PMCMV com um aporte de recursos relativamente pequeno em relação ao montante global (apenas 2%), mas de grande importância


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para os movimentos populares de moradia, que historicamente tiveram sua crença na autogestão negligenciada pelos governos federais.

A inserção do “Entidades” no PMCMV ocorreu posteriormente e a custo de intensas disputas. O Entrevistado 1 (CoMP) relata:


Como que ele [PMCMV] foi feito. E aí vem a nossa briga desde o primeiro dia que foi falado assim: ‘nós estamos pensando em soltar um pacote de habitação’, e isso foi em 2008, quando nós começamos a briga que quem estava dando o modelo, quem estava montando o Programa, era o setor empresarial e tinha muito pouco espaço para os governos populares, urbanos e rurais. Então a custo de pancada nossa de um lado, pancada nossa do outro com os rurais, saiu o PNHR e Programa Minha Casa, Minha Vida – Entidades (Entrevistado 1, CoMP).


Nos anos seguintes, o Programa passou por uma série de alterações, todas, contudo, incrementais e pontuais. De maneira geral, o desenho do PMCMV, ao longo de mais de dez anos de existência, manteve-se fiel à estrutura que favorecia a visão mercadológica da política. Na prática, com o passar dos anos e especialmente após o processo de impeachment da presidenta Dilma Rousseff, o Programa enfrentou sucessivos cortes no orçamento, dificultando, em particular, a oferta de moradias para a população de baixa renda.

No período subsequente, houve também o fechamento de importantes arenas políticas do subsistema, o que teve impacto significativo na capacidade de influência da CoMP. Com o Decreto nº 9.076/2017, a 6ª Conferência Nacional das Cidades foi adiada sob a alegação de impossibilidade de sua realização na data prevista. O decreto também determinou a revogação do mandato dos conselheiros do ConCidades, que, segundo o documento, atuavam há treze anos sem atualizações. Vale destacar que, nesse momento, o MCidades já não possuía a mesma composição de sua criação. Em resumo, a CoMP passou a enfrentar um forte enfraquecimento com a perda de suas principais arenas, canais de influência e recursos políticos.

O fim de uma política pública pode ser o nascimento de outra, e a troca de governos é um momento propício para mudanças. Foi o que ocorreu com o PMCMV. Em 2020, sob a gestão de Bolsonaro (2019-2022), foi editada a Medida Provisória n.º 996, instituindo o Programa “Casa Verde e Amarela” (PCVA) e concretizando a extinção do PMCMV.

Assim como o PMCMV, o PCVA tem sua estrutura baseada em um mix de fundos de recursos públicos e privados. Há a possibilidade de subsídios diretos com recursos oriundos do OGU (Orçamento Geral da União) e outros fundos cotistas (FDS, FAR), e há os recursos baseados principalmente no FGTS.


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Acerca das formas de intervenção do Programa, destacamos que se excluiu da proposta o atendimento para a faixa 1 como implementado pelo PMCMV. Também é excluída a modalidade “Entidades” que atendia a esse mesmo público. Para o grupo de menor renda, previu-se apenas a conclusão de duzentas mil unidades paralisadas no país e a aplicação do Fundo de Desenvolvimento Social (FDS), de forma integral, a ações de regularização fundiária. Na sessão de lançamento do PCVA, o Ministro do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR)9, Rogério Marinho, destacou a importância da regularização fundiária na nova política habitacional e disse que a Lei de REURB (Regularização Fundiária Rural e Urbana – n.º 13.465/2017) veio para resolver a informalidade “que campeia nas nossas cidades”. Prosseguiu afirmando que o programa irá entregar ao cidadão mais humilde algo que, certamente, para ele é extraordinariamente importante: a escritura pública de sua residência, o que resulta em uma valorização imediata de 40% a 50% do imóvel. Isso representa, de acordo

com ele, uma transferência de renda direta, Sr. Presidente! Isso é uma ação social!10

Ainda durante o evento, o Sr. Sidney (FEBRABAN) informou que dentro do FDS existiria um outro fundo formado por cotas de bancos privados brasileiros que há anos não estava sendo utilizado, totalizando cerca de R$ 500 milhões de reais. Essas cotas, que já teriam sido negociadas pelo governo com o auxílio da FEBRABAN, seriam “doadas” pelos bancos privados e empregadas na Política, exatamente para fomentar as ações de regularização fundiária.

Obviamente, essa doação possui uma contrapartida. A MP 996 alterou o art. 33 da Lei n.º 13.465/2017 que previa a REURB-S (Reurbanização de Interesse Social) como responsabilidade unicamente do poder público. Com o novo texto, a norma torna a REURB-S discricionária ao gestor público municipal, além de também permitir aos moradores das áreas em questão a possibilidade de garantir a regularização às suas custas. Nesse novo contexto, surge a figura dos Agentes Promotores (o setor privado) no processo de regularização (Instrução Normativa n.º 2, de 21 de janeiro de 2021, MDR). Esses passam a poder gerir todo o processo de regularização fundiária: escolha das áreas, mobilização da comunidade, estudos técnicos, os projetos de infraestrutura, de regularização e o registro das matrículas individualizadas e da área (o loteamento).


9 O Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) substitui o Ministério das Cidades (MCidades) no governo Bolsonaro.

10 O lançamento do PCVA foi transmitido pela TV BRASIL e encontra-se disponível em: Lançamento do Programa Casa Verde e Amarela - YouTube. Acesso em 29/09/2022.

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A essência da proposta de regularização fundiária presente no PCVA baseia-se na titularização em massa das propriedades, processo que, para ser concretizado, precisa superar alguns entraves, como a insegurança representada pelo setor cartorário. A solução proposta para esse problema é a implementação de blockchain nos cartórios. Segundo o presidente da Caixa Econômica Federal, essa tecnologia, que já está presente em cerca de 1.349 cartórios em todo o país, possibilitaria a integração nacional dos registros de imóveis, além de proporcionar maior agilidade nos processos (reduzindo o prazo de 40 para 5 dias) e garantir transparência nas transações. Essas condições são consideradas essenciais para a implementação do Home Equity11 no país (Guimarães, na sessão solene de lançamento do PCVA em 25 de ago. 2020).

A dinâmica adotada no processo de regularização fundiária previsto no PCVA reflete claramente a aplicação da crença de que a moradia é um ativo financeiro. A titularização da propriedade garante, primeiramente, proteção ao sistema jurídico, que passa a ter a capacidade de reaver o bem em caso de inadimplência. Além disso, o registro da escritura permite retirar o imóvel da condição de extrapatrimonial, transformando-o em capital passível de ser utilizado como garantia para a obtenção de crédito.

Neste mesmo contexto, está a alteração de juros para os financiamentos junto ao FGTS para algo em torno de 4,5%, com destaque para a região norte e nordeste, com 4,25%. Essas novas e menores taxas anunciadas com o PCVA passaram a poder ser operadas dentro de uma nova linha de crédito imobiliário anunciada pela Caixa Econômica Federal no ano de 2019. Essa nova linha trazia como novidade a possibilidade de o financiamento habitacional ser indexado pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) ao invés da TR (Taxa Referencial), como feito tradicionalmente. Com o emprego do IPCA e, consequentemente, da securitização dos financiamentos, os bancos passaram a poder ofertar a expectativa das prestações dos mutuários para o mercado de capitais. Segundo o presidente do Banco Central, o Home Equity e a securitização são dois elementos essenciais para a expansão do crédito imobiliário no país (Campos Neto, em nome do Banco Central, no lançamento da nova linha de crédito em 20 de ago. 2019).

Outro ponto de destaque do PCVA é a possibilidade de destinação de imóveis da União para a iniciativa privada. Da forma como a destinação desses imóveis públicos estava prevista no Programa, a função social da propriedade poderia não ser garantida. No processo licitatório previsto na Lei, ao ente privado era solicitado que as contrapartidas ocorressem no imóvel ou até mesmo nas intermediações. Em outras palavras, o empreendedor ficaria livre para realizar


11 Forma de acesso ao crédito que usa a própria moradia como garantia.

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qualquer edificação, com a anuência do poder público local, desde que oferecesse serviços relacionados à habitação (Balbim, 2022).

No PCVA, as decisões seguiam concentradas no Executivo Federal e a participação popular foi novamente suprimida. A MP 996/2020 propôs a alteração da Lei n.º 11.124/2005 (SNHIS/FNHIS) em seu art. 14 que estabelecia que fosse ouvido o ConCidades para as definições da Política (incisos II e III). A MP 996/2020 definia que a participação social fosse realizada somente se o então Ministério do Desenvolvimento Regional julgasse necessário e que ocorresse por meio de consultas públicas genéricas, desvirtuando, por completo, o que fora estabelecido anteriormente.

O conjunto de crenças identificado no PCVA é predominantemente formado pelas ideias defendidas pela CoFM, a saber: redução do Estado; a moradia como um ativo financeiro; centralização das decisões pela elite governamental; pouca consideração pela atuação dos conselhos e participação da sociedade civil; os recursos públicos provenientes de fontes públicas e privadas; a consideração do setor privado como essencial para a solução do problema; a preocupação com as especificidades regionais e uma visão contrária à autogestão.

Em relação aos embates políticos entre as coalizões, como já mencionado, praticamente não há espaço institucional aberto para a participação da CoMP. O desenho do PCVA, assim como o evento de inauguração do Programa, evidencia apenas a participação de atores ligados ao mercado, com destaque para a CoFM. Os entrevistados, de forma unânime, confirmam a exclusão da CoMP neste período.


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Quadro 2 – Crenças contempladas nos processos decisórios


Fonte: Romagnoli (2023, p. 209).


Considerações finais


Um dos principais feitos deste trabalho é o esforço de sistematização da movimentação de atores e ideias que disputaram a Política Nacional de Habitação Social (PNHS) no Brasil, entre 1987 e 2021. Ao analisar esse processo de forma longitudinal, concluímos que a entrada da CoMP no subsistema da política, na década de 1980, trouxe à tona ideias que até então não estavam em destaque no debate sobre a PNHS. A problematização em torno da função social da propriedade, do direito à cidade, da necessidade de aplicação de recursos públicos e da participação social direcionaram a discussão da política para um campo ainda pouco explorado e institucionalizado na esfera nacional.

Entendemos que a partir da influência da CoMP, arma-se uma estrutura institucional que oferece importante base para se pensar na política habitacional social no Brasil. Destacamos não apenas a aprovação de instrumentos de regulação da terra, predominantes na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Cidade, mas, também, a construção de um Sistema Nacional articulado entre os entes da federação com seus respectivos conselhos e fundos financeiros.


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No entanto, é inegável a força da CoDCC no subsistema. A análise do período de 1987 a 2005 revela o intenso processo de debate e negociação da CoMP com atores ligados ao mercado para alcançar a configuração e aprovação do Estatuto das Cidades e do SNHIS, tal como os conhecemos atualmente.

Se, durante o primeiro momento, a CoMP desfrutava de relativo sucesso no subsistema, com a aprovação de normas que refletiam predominantemente suas crenças, indicando uma possível mudança nas políticas habitacionais sociais no país, com o advento dos grandes programas habitacionais, o que se concretiza é exatamente o oposto.

Depreendemos que o PCVA amplia o processo iniciado com o PMCMV de protagonismo do mercado na execução da política habitacional do país, pois se identifica forte transferência do ordenamento urbano municipal para a iniciativa privada. Se com o PMCMV as empresas do setor da construção civil escolhiam as terras (mais baratas e periféricas) para a produção de novas moradias sociais, com o PCVA, além de contar com essa prerrogativa, a iniciativa privada passa a definir áreas objeto de regularização fundiária. Regularização que ampliará o mercado financeiro imobiliário ao permitir que esses mesmos imóveis regularizados se tornem garantias econômicas para os empréstimos bancários (Home Equity). Por fim, destaca-se o processo de securitização com o fomento ao crédito por meio da redução dos juros em financiamentos que podem ser indexados juntos ao IPCA.

A pesquisa revelou a hegemonia das crenças relacionadas à expansão da atuação do mercado, bem como o enfraquecimento das crenças relativas à participação social e ao direito à cidade nos programas analisados, o que reflete a perda de influência da CoMP diante da atuação da CoDCC e CoFM, que conseguiram garantir a manutenção de suas crenças nos processos decisórios.

Este artigo tem como objetivo destacar a crescente necessidade de uma análise política das políticas públicas, que enriqueça a compreensão da dinâmica dos processos decisórios. Como foi mostrado, o Advocacy Coalition Framework (ACF) é um modelo útil para analisar atores e ideias, suas interações e disputas, com o intuito de influenciar as decisões de gestores governamentais. Espera-se, assim, ter evidenciado a utilidade desse modelo para iluminar os interesses envolvidos que explicam a conformação de uma política, neste caso, a Política Nacional de Habitação Social no Brasil.


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BRASIL. Lei n. 11.977, de 07 de julho de 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas; altera o Decreto-Lei no 3.365, de 21 de junho de 1941, as Leis nos 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 10.257, de 10 de julho de 2001, e a Medida Provisória no 2.197-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Diário Oficial da União: República Federativa do Brasil: Poder Legislativo, Brasília, DF, 08 julho 2009.


BRASIL. Lei n. 14.118, de 12 de janeiro de 2021. Institui o Programa Casa Verde e Amarela; altera as Leis n. 8.036, de 11 de maio de 1990, 8.100, de 5 de dezembro de 1990,

8.677, de 13 de julho de 1993, 11.124, de 16 de junho de 2005, 11.977, de 7 de julho de 2009,

12.024, de 27 de agosto de 2009, 13.465, de 11 de julho de 2017, e 6.766, de 19 de dezembro de 1979; e revoga a Lei nº 13.439, de 27 de abril de 2017. Diário Oficial da União: República Federativa do Brasil: Poder Legislativo, Brasília, DF, 26 março 2021 – edição extra.


DIÁRIO DA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE (DANC), Suplemento.

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