Teoria & Pesquisa: Revista de Ciência Política, São Carlos, v. 33, n. 00, e024005, 2024. e-ISSN: 2236-0107
DOI: https://doi.org/10.14244/tp.v33i00.1059 1
HISTÓRIA PROVIDENCIAL E POLÍTICA EXPERIMENTAL: INTRODUÇÃO AO
PENSAMENTO CONSERVADOR DE JOSEPH DE MAISTRE
HISTORIA PROVIDENCIAL Y POLÍTICA EXPERIMENTAL: INTRODUCCIÓN AL
PENSAMIENTO CONSERVADOR DE JOSEPH DE MAISTRE
PROVIDENTIAL HISTORY AND EXPERIMENTAL POLITICS: AN INTRODUCTION
TO THE CONSERVATIVE THOUGHT OF JOSEPH DE MAISTRE
Osmir DOMBROWSKI1
e-mail: osmirdom@yahoo.com.br
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DOMBROWSKI, O. História providencial e política experimental:
Introdução ao pensamento conservador de Joseph de Maistre.
Teoria & Pesquisa: Revista de Ciência Política, São Carlos, v.
33, n. 00, e024005, 2024. e-ISSN: 2236-0107. DOI:
https://doi.org/10.14244/tp.v33i00.1059
| Submetido em: 13/07/2023
| Revisões requeridas em: 25/08/2023
| Aprovado em: 11/02/2024
| Publicado em: 17/04/2024
Editora:
Profa. Dra. Simone Diniz
Editor Adjunto Executivo:
Prof. Dr. José Anderson Santos Cruz
1
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Toledo PR Brasil. Doutor em Ciência Política.
Membro do Programa de Pós-graduação em Serviço Social (PPGSS).
História providencial e política experimental: introdução ao pensamento conservador de Joseph de Maistre
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RESUMO: Este ensaio apresenta uma introdução ao pensamento político de Joseph de Maistre
colocando em evidência o conteúdo que faz deste nobre saboiano contemporâneo da Revolução
Francesa um dos primeiros expoentes do pensamento conservador. No texto o leitor verá como
se estrutura a crítica maistriana ao iluminismo e os principais argumentos usados por ele para
desqualificar os princípios que alicerçam o moderno Estado Democrático de Direito. Por fim,
o autor chama a atenção para o fato de que o discurso de Maistre continua ecoando ao longo do
tempo e, passados mais de 200 anos, suas ideias ainda encontram entusiastas.
PALAVRAS-CHAVE: Joseph de Maistre. Conservadorismo. Pensamento conservador.
História providencial. Política experimental.
RESUMEN: Este ensayo presenta una introducción al pensamiento político de Joseph de
Maistre, destacando los contenidos que hacen de este noble saboyano contemporáneo de la
Revolución Francesa uno de los primeros exponentes del pensamiento conservador. En el texto,
el lector verá cómo se estructura la crítica de de Maistre a la Ilustración y los principales
argumentos que utilizó para descalificar los principios que sustentan el moderno Estado
democrático de derecho. Por último, el autor llama la atención sobre el hecho de que el
discurso de Maistre sigue resonando a lo largo del tiempo y, después de más de 200 años, sus
ideas siguen encontrando entusiastas.
PALABRAS CLAVE: Joseph de Maistre. El conservadurismo. Pensamiento conservador.
Historia providencial. Política experimental.
ABSTRACT: This essay presents an introduction to the political thought of Joseph de Maistre,
highlighting the content that makes this Savoyard noble contemporary of the French Revolution
one of the first exponents of conservative thought. In the text, the reader will see how Maistre’s
critique of the Enlightenment is structured, and the main arguments used to disqualify the
principles that underpin the modern Democratic State of Law. Finally, the author draws
attention to the fact that Maistre’s speech continues to resonate over time, and even after more
than two hundred years, his ideas still find enthusiasts.
KEYWORDS: Joseph de Maistre. Political conservatism. Conservative thought. Providential
history. Experimental politics.
Osmir DOMBROWSKI
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Introdução
O objetivo desse ensaio é introduzir o leitor no pensamento político de Joseph de
Maistre, um dos mais importantes autores conservadores. Sua obra, frequentemente colocada
ao lado das Reflexões sobre a Revolução em França do célebre polemista britânico Edmund
Burke, também foi produzida no calor dos acontecimentos e mostra, com muita propriedade, o
ponto de vista dos derrotados no processo revolucionário, ou seja, daqueles que reagiram às
transformações impostas pela revolução e lutaram pela conservação do status quo e, nesse
processo, forneceram as bases do que mais tarde seria conhecido como pensamento
conservador. Diferentemente do britânico, entretanto, as reflexões de Maistre não se limitam a
denunciar os erros e os excessos da Revolução Francesa, mas abordam-na em sua totalidade
criticando seus fundamentos filosóficos e especulando sobre as consequências que ela deixaria
para a posteridade.
Nas páginas que seguem, após apresentarmos alguns breves dados biográficos deste
ilustre fundador do pensamento conservador, veremos como a crítica maistriana ao iluminismo
se estrutura e, a partir dela, como se dá a recusa de todo o legado revolucionário francês que se
estruturaria sob a forma do moderno Estado Democrático de Direito.
Contrarrevolucionário e anti-iluminista
Nascido em 1753, no centro do século XVIII, Joseph de Maistre é filho de uma família
cortesã de Chambéry, capital do Ducado da Saboia no sul da França atual, mas que na época
estava integrado ao Ducado da Sardenha e ao Reino do Piemonte. De acordo com a
pesquisadora Rita Sacadura Fonseca (2010, p. 14), Maistre foi socializado “no meio da
magistratura hereditária” ao qual pertenciam seu pai e avô materno, sendo preparado desde a
infância para o exercício das funções de magistrado. Após ter cursado Direito na Universidade
de Turim, ingressou na Magistratura em 1774 e oito anos depois, dadas suas “qualidades
morais” e seu “talento legislativo”, foi escolhido pelo Rei e nomeado Senador (Fonseca, 2010,
p. 14).
O filósofo Isaiah Berlin (2005, p. 169) acredita que a Revolução Francesa,
particularmente “o espetáculo do Terror Jacobino”, marcou profundamente o magistrado e o
transformou em um “inimigo implacável de tudo o que era liberal”. No mesmo sentido, Fonseca
(2010) nos informa que quando a Revolução aboliu os direitos feudais e a servidão, extinguiu
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o dízimo e deu início à desapropriação de terras da igreja católica, Maistre tornou-se seu inimigo
declarado.
Quando as tropas francesas invadiram a Saboia em 1792, Joseph de Maistre fugiu para
Turim e depois para Lausanne, onde exerceu as funções de agente consular e participou de
algumas ações em favor de seus compatriotas refugiados. Na Suíça, o saboiano dedicou-se a
um estudo crítico sistemático da obra de Rousseau, filósofo que desfrutava de grande prestígio
entre os revolucionários e era saudado como uma espécie de inspirador da Revolução Francesa.
O conteúdo desse estudo permeia a obra política mais famosa de Maistre, Considerações sobre
a França, publicada em 1797, pouco antes de sua partida de Lausanne (Lebrun, 1996).
O saboiano encontrou em Rousseau seu principal oponente e por intermédio dele
destilou uma crítica ácida ao iluminismo. Não é difícil perceber que a frase que abre as
Considerações Sobre a França é um tipo de paródia da famosa abertura do Contrato Social de
Rousseau. Enquanto para o genebrino, “o homem nasce livre, e por toda parte encontra-se a
ferros” (Rousseau, 1991, p. 22), para Maistre (2010, p. 89), “todos estamos ligados ao trono do
Ser Supremo por uma corrente flexível, que nos prende sem nos escravizar”.
A filosofia das luzes ao longo dos séculos XVII e XVIII se empenhou em demonstrar
que tendo nascido livre, o homem tem a liberdade como direito natural e para garantir esse
direito, toda organização política haveria de ser racionalmente reestruturada. O magistrado da
Saboia, por sua vez, recusava o fundamento sobre o qual todo o edifício iluminista fora erguido:
se o homem não é naturalmente livre, ele não pode fazer contratos e, por consequência, a
organização da sociedade política deve repousar sobre outra fonte de legitimidade.
A história providencial e o sentido da Revolução Francesa
No pensamento de Maistre, um intelectual temente a deus e obediente à igreja, o ser
supremo está sempre presente e toda cadeia de causas e consequências, inevitavelmente,
encontra no criador seu início e seu fim. Nesse axioma, podemos ver o limite claro que Maistre
impõe à razão humana e à capacidade criadora do homem.
Leitores de Burke, como o próprio Maistre, certamente se lembram que o britânico
também ficara horrorizado com a pretensão dos revolucionários que agiam “como se pudessem
refazer tudo a partir do nada”, colocando-se, assim, no lugar do próprio criador (Burke, 1982,
p. 71). Maistre, porém, levou a perspectiva religiosa ao limite, enunciando uma teoria da
história onde a providência divina ocupa lugar central e não deixa espaço para qualquer
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interferência da razão humana. Nessa teoria, a história é apenas o registro da intervenção divina
nas coisas terrenas. Para Maistre, quando os homens acreditam que estão agindo livremente,
nada mais fazem do que desempenhar o papel que lhes foi reservado pelo autor de toda a
história, até mesmo quando pretendem agir em sentido contrário a ele. E a própria Revolução
Francesa, um fenômeno sob todos os aspectos novo e inusitado, não poderia escapar desse
roteiro, mas apenas confirmá-lo inteiramente. O que mais impressiona na Revolução Francesa,
diz Maistre (2010, p. 93), “é a força arrebatadora que faz curvar todos os obstáculos”; tão
poderosa que “ninguém contraria a sua marcha impunemente”. Isto se não porque a
revolução seja obra de grandes homens, filósofos ou soldados, mas porque é o modo pelo qual
a divindade se mostra aos homens; “não são os homens que conduzem a revolução, é a
revolução que emprega os homens”, afirma o magistrado (Maistre, 2010, p. 98).
Não se tire disso, todavia, conclusões apressadas. O caráter divino da Revolução
anunciado por Maistre não a torna uma coisa boa. Aos olhos do saboiano, mesmo sendo obra
da providência, a Revolução continua apresentando um “caráter satânico, que a distingue de
tudo o que se viu” (Maistre, 2010, p. 157). A Revolução é um “acontecimento único na
história” porque é “radicalmente má; nenhum elemento de bem aí alivia o olhar do observador:
é o mais alto grau de corrupção conhecido; é a pura impureza.” (Maistre, 2010, p. 151). Não
obstante, novamente em aparente contradição, de acordo com Maistre, ela é “simultaneamente
um terrível castigo para os franceses e o único meio de salvar a França.” (Maistre, 2010, p.
112).
Na análise de Maistre, a Revolução castiga os franceses para recuperar a cristandade na
Europa. A França estava à “cabeça do sistema religioso” e no lugar de exercer uma “verdadeira
magistratura” sobre toda a Europa, ela contradisse sua vocação contribuindo, desse modo, para
a desmoralização do continente. O castigo é apenas um meio providencial de chamá-la de “volta
à sua missão”, e todos aqueles que com atos, palavras ou pensamentos, de alguma forma
contribuíram para “afastar o povo da sua crença religiosa”, todos os que agiram contra “as leis
da propriedade” e os que aprovaram o uso de “medidas violentas contra o rei”, serão justamente
castigados (Maistre, 2010, p. 99-100). Entre os que serão punidos Maistre identifica,
obviamente, os ideólogos do iluminismo, mas também os adeptos da Reforma Protestante e
todos os nobres, clérigos ou plebeus que estando em condições de se opor a esses crimes, foram
permissivos e não o fizeram.
Na análise histórica de Maistre, os jacobinos e o Terror implantado pelo Comitê de
Salvação Pública apenas cumpriram um papel que lhes havia sido reservado pela providência:
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o de salvar a França. Se a contrarrevolução tivesse vencido com o apoio das potências
estrangeiras reunidas na Aliança, a França teria sido aniquilada e o rei assumiria um trono sobre
uma nação dividida e moralmente abalada. Contudo, empurrados pelo terror da guilhotina, os
cidadãos em armas tinham suas forças duplicadas no combate aos estrangeiros nas fronteiras.
O gênio infernal de Robespierre operava, então, um prodígio: consolidava a unidade interna e
a integridade da França ante as forças externas. Assim, quando se alcançasse o destino
inevitável dado pela providência e a contrarrevolução triunfasse, o sangue teria banhado toda
a nação. Em função disso, o rei estaria desobrigado de impor castigos ao povo e a França poderia
se reposicionar com toda a sua grandeza e esplendor perante a Europa para cumprir sua missão.
Não à toa, um analista tão parcimonioso como Albert Hirschman (1992, p. 23), afirma que
Maistre atribui à providência “uma crueldade requintada”.
Nesse cenário, como havia sido a revolução, a contrarrevolução defendida por Maistre
também deveria ser um fenômeno singular: “[...] o restabelecimento da Monarquia, a que se
chama contrarrevolução, não será uma revolução contrária, mas o contrário da Revolução.
(Maistre, 2010, p. 277, destaque no original). De acordo com Maistre, a contrarrevolução não
deveria mobilizar multidões e nem produzir grandes líderes populares. Tampouco resultaria de
atos heroicos da nobreza imigrada apoiada em seus pares estrangeiros. Simplesmente, o rei seria
naturalmente reconduzido ao trono porque esse era o desejo do ser supremo que anima,
organiza e dirige tudo, tanto no mundo físico como no político. No pensamento desse inimigo
da revolução, quando uma pessoa trabalha pela ordem, ela associa-se ao seu autor e, dessa
forma, é favorecida pela natureza. Nessa direção, “o retorno à ordem não pode ser doloroso,
porque será natural, e porque será favorecido por uma força secreta, cuja ação tudo cria”.
(Maistre, 2010, p. 277).
A certeza de que a restauração da monarquia seria o final do processo é deduzida por
Maistre por meio de uma lógica punitivista que Hirschman (1992) tão bem classificou como a
tese da perversidade. De acordo com essa tese, fartamente manipulada por propagandistas
conservadores ao longo da história, por alguma razão perversa, todo e qualquer esforço das
nações para alterar o status quo resulta exatamente no contrário do que se pretende. Para o
saboiano não se pode contrariar a natureza eterna das coisas impunemente, e sendo assim, sua
conclusão é praticamente inevitável:
Se se quiser saber o resultado provável da Revolução Francesa, basta examinar
em que é que todas as facções se reuniram: todos procuraram o aviltamento, a
destruição mesmo do Cristianismo universal e da Monarquia; de onde se segue
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que todos os seus esforços resultaram na exaltação do Cristianismo e da
Monarquia (Maistre, 2010; p. 232, destaque no original).
No desenrolar da história providencial, o papel do povo é absolutamente secundário: “O
povo não serve de nada para uma revolução, ou, quando muito, participa apenas como um
instrumento passivo” (Maistre, 2010, p. 227). Consequentemente, no pensamento do saboiano
não há qualquer possibilidade de se aceitar a ideia iluminista de soberania popular. Sobre isso,
Maistre (2010, p. 235) afirma taxativamente que “nenhuma nação pode dar a si própria um
governo” como sustentavam os contratualistas. Para ele, o poder dos homens não é suficiente
para tal feito. O raciocínio por trás dessa afirmação é o de que qualquer poder estabelecido
pelos homens sempre pode ser questionado pelos próprios homens, de modo que nenhum
governo desse tipo conseguiu obter algum grau de estabilidade ao longo da história. Para
Maistre, para ser respeitável e dispor de poderes para exercer autoridade sobre todos os homens
o governo carece de um componente misterioso, oculto e inacessível aos seres humanos.
Maistre não nega o postulado corroborado pela filosofia das luzes de que o ser humano
é naturalmente dotado de razão, o que ele nega é que esse atributo seja politicamente benéfico.
Muito pelo contrário, segundo afirma em suas anotações sobre Rousseau, “a razão humana,
reduzida aos seus próprios recursos, é perfeitamente inútil, não apenas para criar, mas também
para preservar qualquer associação política ou religiosa...” (Maistre, 1996, p. 87, tradução
nossa
2
).
No pensamento do saboiano, a razão gera problemas e produz disputas, e para obter um
bom comportamento não precisamos dela, mas de crenças. Dessa maneira, o homem deve
crescer cercado por dogmas desde o berço, para que quando a sua razão for despertada, ela
encontre todas as suas opiniões prontas (Maistre, 1996, p. 86).
Esse raciocínio coloca o preconceito no centro da teoria política de Maistre. Para o
magistrado da Saboia, os preconceitos não devem ser tomados em um sentido negativo. “No
sentido estrito da palavra”, diz ele, preconceitos são simplesmente “opiniões adotadas antes de
qualquer exame”, e as opiniões desse tipo são “os verdadeiros elementos da felicidade dos
homens” e o “paládio dos impérios”. Essas opiniões formam as bases sobre as quais se constitui
a moralidade e sem elas, conclui o magistrado, não pode existir nem religião, nem moralidade,
nem governo (Maistre, 1996, p. 87, tradução nossa
3
).
2
“Human reason reduced to its own resources is perfectly worthless, not only for creating but also for preserving
any political or religious association…”
3
“Let us not take this word [prejudices] in a bad sense. It does not necessarily mean false ideas, but only, in the
strict sense of the word, opinions adopted before any examination. Now these sorts of opinions are man's greatest
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O conservadorismo de Maistre, portanto, não se resume apenas a uma reafirmação da
tradicional teoria do direito divino dos reis. A reação maistriana alcança outros patamares do
desenvolvimento do pensamento ocidental. Ao negar a capacidade criativa da razão humana e
reintroduzir o preconceito e a crença cega como base para as organizações políticas, Maistre
não somente legitima uma dominação de tipo tradicional com fundamento místico, como abre
caminho para a negação da própria ciência moderna.
O caráter divino da guerra do castigo e do carrasco
Se a providência, como dissemos, ocupa lugar central na teoria da história de Maistre, e
se a história é o registro das manifestações da providência, ganha especial relevo a afirmação
do saboiano em Considerações sobre a França de que “a guerra é o estado habitual do gênero
humano [...] e a paz, para cada nação, é apenas um pequeno descanso” (Maistre, 2010, p. 125).
Essa ideia é aprofundada anos depois nos Diálogos sobre o Governo Temporal da Providência
- Soirées de Saint-Pétersbour, onde Maistre afirma que a profissão da guerra de modo algum
degrada alguém, pelo contrário, contribui para aperfeiçoá-lo. Para o nobre saboiano, “as
pessoas de caráter mais dócil amam a guerra, desejam-na e fazem-na com paixão” e “o sangue
que corre em toda parte, não faz mais do que animá-lo a derramar o seu e o dos outros” (Maistre,
1853, p. 205-206, tradução nossa
4
).
Na natureza, segundo Maistre, todos os seres vivos, tanto do reino animal como do
vegetal, possuem seus predadores e somente o homem foge a essa regra. O homem habita o
topo da cadeia alimentar e não tem outro predador que não ele mesmo. Disso, Maistre (1853,
p. 210, tradução nossa
5
) conclui que “é o homem que está encarregado de degolar o homem” e
a guerra é o meio que permite ao ser humano, dócil e sentimental, executar tal tarefa. Para
Maistre, é essa força natural que arrasta o homem ao combate de um modo irresistível: o
homem é um instrumento passivo nas mãos da providência e
Deste modo se cumpre sem cessar, desde o menor inseto até o homem, a
grande lei da destruição violenta dos seres vivos. A terra inteira, encharcada
continuamente de sangue, não é mais que um altar imenso onde tudo que vive
deve ser imolado sem fim, sem medida, sem descanso, até a consumação das
need, the true elements of his happiness, and the Palladium of empires. Without them, there can be neither worship,
nor morality, nor government”.
4
“Los caracteres mas dulces aman la guerra, la desean y la hacen com pasion.”
“La sangre que corre por todas partes no hace mas que animarle a derramar la suya y la dos otros...”
5
“El hombre es quien está encargabo de degolar al hombre.”
Osmir DOMBROWSKI
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coisas, até a extinção do mal, até a morte da morte (Maistre, 1853, p. 211,
tradução nossa
6
).
No pensamento de Maistre, portanto, a guerra possui um caráter divino: “A guerra é
divina na glória misteriosa que a rodeia e no atrativo não menos inexplicável que nos conduz a
ela” (Maistre, 1853, p. 212, tradução nossa
7
). Mas também é divina nas consequências que
deixa entre nós. Do mesmo modo que quando um jardineiro poda uma árvore não devemos
pensar nos galhos e nas folhas que são cortados e sim nos frutos que a árvore produzirá,
devemos nos atentar para o fato de que os “verdadeiros frutos da natureza humana, as artes, as
ciências, as grandes empresas, os altos conceitos, as virtudes másculas, surgem sobretudo nos
tempos de guerra”, e as nações, continua o nobre da Saboia, “só alcançam o mais alto grau de
grandeza de que são susceptíveis após longas e sangrentas guerras” (Maistre, 2011, p. 134).
O padecimento dos inocentes nas guerras é justificado por Maistre por meio do que ele
chama de dogma da “reversibilidade das dores da inocência em proveito dos culpados”. Trata-
se de um dogma universal, segundo ele, do qual os antigos “derivaram o uso de sacrifícios” e
que o “cristianismo viria consagrar” (Maistre, 2010, p. 136-7). O crítico francês Antoine
Compagnon (2011) observou que o dogma maistriano postula a reversão da inocência em
proveito dos culpados, mas Maistre evita falar nos inocentes. Para Maistre, os homens
conhecem os outros por suas ações, e percebem a maldade quando veem um crime sendo
cometido, mas “a ocasião não faz o vilão, ela o manifesta”. E o deus, que tudo e tudo sabe,
“usa o castigo como remédio, e fere o homem que nos parece saudável para extirpar o mal antes
que este atinja o seu auge”. Em outras palavras, a providência “reprime as inclinações viciosas
antes mesmo de terem produzido crimes” (Maistre, 1853, p. 263, tradução e destaque nossos
8
).
Assim como uma ferida para ser curada exige alguma dose de abstinência ou privações
rigorosas e medicamentos desagradáveis, “na ordem sensata como na ordem superior, a lei é a
mesma e tão velha como o mal: o remédio para a desordem será a dor” (Maistre, 2010, p. 164).
E a dor será constante porque a inocência não existe e é apenas o temor do castigo que mantém
a humanidade em ordem. “O castigo”, ensina o nobre em sua preleção, é um governante ativo;
6
“De este modo se cumple sin cesar, desde el ma pequeño insecto hasta el hombre la gran ley de la destruccion
violenta de los seres vivientes. La tierra entera, empapada continuamente de sangre, no es mas que um altar imenso
donde todo lo que vive deve ser inmolado sin fin, sin medida, sin descanso, hasta la consumacion de las cosas,
hasta la estincion del mal, hasta muerte de la muerte.”
7
“La guerra es divina em la gloria misteriosa que la rodea y em atractivo no menos inesplicable que a ella nos
conduce.”
8
“La ocasion no hace el hombre malvado, sino que lo manifiesta.”
“(...) emplea el castigo por via de remédio y hiere al hombre que nos parece sano para estipar el mal antes del
parasismo.”
“(...) reprime las inclinaciones viciosas antes que hayan producido los crimenes.”
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é o verdadeiro administrador dos negócios públicos”, ele rege toda a humanidade e a
prerrogativa do soberano de castigar os culpados é divina (Maistre, 1853, p. 31-32, tradução
nossa
9
).
Dessa condição que aflige a humanidade inapelavelmente, Maistre deriva a necessidade
da existência de uma figura lúgubre que exerce sobre o saboiano um verdadeiro fascínio: o
carrasco; o homem responsável por infligir aos outros as punições decretadas pela justiça
humana. Que ser inexplicável é este que prefere o ofício de “atormentar e matar seus
semelhantes” a qualquer outro mais agradável, lucrativo e até mesmo, mais honroso, pergunta
retoricamente o magistrado, para responder, em seguida, que se trata de “um ser extraordinário”
cuja existência decorre de “um decreto particular, um fiat do poder criador” (Maistre, 1853, p.
32, tradução nossa
10
).
O carrasco, para Maistre, é uma pedra angular da sociedade e toda grandeza; todo poder;
e toda subordinação descansa sobre ele; “retire-se do mundo esse agente incompreendido, e no
mesmo instante a ordem dá lugar ao caos, os tronos caem e a sociedade desaparece” (Maistre,
1853, p. 33, tradução nossa
11
).
A política experimental e a recusa da soberania popular, da liberdade e dos direitos
humanos
Deixemos agora o campo dos significados metapolíticos do pensamento maistriano para
nos aproximarmos um pouco mais da sua posição em relação às instituições políticas temporais,
características do Estado Democrático de Direito que ganharam corpo no curso da Revolução
Francesa. Fazemos essa aproximação, entretanto, lembrando que a separação entre política e
religião empreendida pelos revolucionários é algo impossível no pensamento de Maistre: “todas
as instituições imagináveis”, dizia ele, “ou repousam sobre uma ideia religiosa, ou passam”,
enquanto as instituições duráveis têm base “nas ideias religiosas” ou têm “base divina”. A razão
humana, “ou aquilo a que se chama filosofia”, dizia Maistre, não apenas “não pode suprir as
bases” para uma associação política, como também, e, sobretudo, se torna “uma potência
essencialmente desorganizadora” (Maistre, 2010, p. 158-9).
9
“(...) el castigo es um gobernador activo; es el verdadeiro administrador de los negócios públicos...”
10
“Que ser tan inesplicable es este que prefere a todos los oficios agradabres, lucrativos y aun honoríficos, (...) el
de atormentar y matear á sus semejantes?”
“(...) es un ser estraordinario, y para que exista em la família humana, es menester um decreto particular, um fiat
del poder creador”.
11
“Quitad del mundo esse agente incomprehensible y en el instante mismo el orden deja su lugar al cahos, los
tronos se hunden y la sociedade desaparece.”
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A desqualificação da razão humana empreendida por Maistre tem um claro sentido de
oposição ao iluminismo. Aqui cabe registrar que Maistre debate com os iluministas em termos
modernos e não atrelado aos discursos do passado. Contra as abstrações criadas pelos filósofos
da razão, Maistre propõe um método de análise da política análogo ao adotado nas ciências da
natureza, a política experimental:
[...] assim como na física, uma centena de volumes de teorias especulativas
desaparecem ante uma única experiência, da mesma forma na ciência política
nenhum sistema pode ser admitido se não for o corolário mais ou menos
provável de fatos bem atestados (Maistre, 1996, p. 120, tradução nossa
12
).
E o magistrado sugere que tais demonstrações necessárias para atestar os fatos sejam
retiradas da história: “A história é política experimental”, diz ele, “é sempre necessário chamar
os homens de volta à história, que é a primeira mestre em política, ou mais exatamente, o único
mestre” (Maistre, 1996, p. 120, tradução nossa
13
).
É com base nesse método que Maistre debate a moderna noção de soberania, a república
e o sistema representativo. É a política experimental que também oferece ao saboiano os
argumentos contrários à noção de liberdade individual e aos direitos humanos.
Em suas anotações sobre Rousseau e o Estado de Natureza, Maistre afirma
expressamente que não é o homem que faz a sociedade. Para ele, os homens nascem em
sociedade. “Onde quer que o homem tenha sido capaz de observar o homem, ele sempre o
encontrou em sociedade” (Maistre, 1996, p. 29, tradução nossa
14
). No pensamento do saboiano,
portanto, o estado natureza dos seres humanos é sempre em sociedade e pouco importa seu grau
de desenvolvimento. “Mesmo os selvagens não são exceção”, continua ele se referindo aos
nativos americanos admirados pelo genebrino, “primeiro, porque também vivem em sociedade,
e, segundo, porque são apenas uma degradação da espécie, um ramo separado, não sabemos
como, da grande árvore social” (Maistre, 1996, p. 29, tradução nossa
15
).
Se a sociedade é o estado natural dos seres humanos, para Maistre, também a soberania
é um dado natural, pois “é impossível separar estas duas ideias” (Maistre, 1996, p. 53, tradução
12
“… and just as in physics a hundred volumes of speculative theories disappear before a single experiment, in
the same way in political science no system can be admitted if it is not the more or less probable corollary of well
attested facts.”
13
“It is always necessary to call men back to history, which is the first master in politics, or more exactly the only
master.”
14
“Wherever man has been able to observe man, he has always found him in Society; ...”
15
“Even savages are not an exception, first, because they also live in society, and second, because they are only a
degradation of the species, a branch separated we do not know how from the great social tree.”
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nossa
16
). Segundo ele, quando você imagina um soberano, supõe uma sociedade, e quando
você pensa em uma sociedade, supõe a existência de um soberano. “É tão impossível
imaginar uma sociedade humana sem um soberano, diz ele, como uma colmeia e um enxame
sem uma rainha”; e isto é suficiente para concluir que “sociedade e soberania nascem juntas”.
(Maistre, 1996, p. 53, tradução nossa
17
).
Temos, pois, que, no pensamento de Maistre, ao contrário do que afirmavam Rousseau
e os contratualistas, o estado natural dos seres humanos é a vida em sociedade, mas não em
qualquer tipo de sociedade, e sim em uma sociedade hierarquicamente organizada e governada
por um poder soberano. Por isso, o magistrado é levado a concluir que “devemos descartar para
o reino da imaginação as ideias de escolha e deliberação no estabelecimento da sociedade e da
soberania”, afastando assim qualquer possibilidade teórica de que um ato deliberado, pacto ou
contrato, possa marcar o surgimento das associações políticas (Maistre, 1996, p. 54, tradução
nossa
18
). Antes de continuar, é preciso ter em conta que quando Maistre fala em estado natural,
ele está pensando em algo tal como foi criado por deus. Natural para o saboiano é aquilo que
não sofreu alterações provocadas pela ação humana e, portanto, é obra divina. É esse raciocínio
que permite a Maistre concluir que a soberania tem origem em deus: “Esta operação é obra
imediata da natureza, ou melhor colocando, do seu autor” (Maistre, 1996, p. 54, tradução
nossa
19
).
Maistre foi louvado pelo acerto de suas previsões quanto à restauração da monarquia na
França. Ele, no entanto, se equivocou enormemente quanto ao futuro da nascente república dos
Estados Unidos da América. Há que se reconhecer que Maistre percebeu antes de Tocqueville
que a América possuía um “elemento democrático” e um “espírito republicano” conferidos por
sua história, e que foi sobre esses elementos que os americanos construíram a sua república e
“não fizeram tábua rasa como os franceses” (Maistre, 2010, p. 196-197, destaque no original).
Não obstante, segundo ele, isso não é suficiente para conferir estabilidade e longevidade à
jovem república. A república norte-americana não poderia prosperar pela mesma razão pela
qual também a república francesa estava fadada ao fracasso: tratava-se de um sistema artificial,
algo criado pelos homens. E uma das loucuras da filosofia moderna, segundo o saboiano, “é
acreditar que uma assembleia pode construir uma nação” (Maistre, 2010, p. 189).
16
“… it is impossible to separate these two ideas.”
17
“It is as impossible to imagine a human society without a sovereign as a hive and a swarm without a queen,…”,
“Society and sovereignty are therefore born together;…”
18
“… we must dismiss to the realm of the imagination the ideas of choice and deliberation in the establishment of
society and sovereignty.”
19
“This operation is the immediate work of nature, or to put it better, of its author.”
Osmir DOMBROWSKI
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Recorrendo ao método da política experimental, Maistre argumenta que a história
registra a existência de algumas repúblicas poderosas: “um pequeno número de republicanos
rodeados pelos muros de uma cidade pode, sem dúvida, ter milhões de súditos; foi esse o caso
de Roma”. Entretanto, segue o magistrado, “não pode existir uma grande nação livre sob um
governo republicano” (Maistre, 2010, p. 142). O raciocínio de Maistre na aplicação de seu
método é quase tautológico: “uma grande república é impossível, porque nunca existiu uma
grande república” (Maistre, 2010, p. 144).
Na ação de recusar a viabilidade histórica do regime republicano está implícita uma
refutação do sistema representativo moderno, o qual é apresentado por Madison (1993) como
um dos elementos responsáveis por tornar possível o funcionamento de uma república em um
território de grandes dimensões.
Na França revolucionária, as mudanças efetuadas no sistema representativo tradicional
a partir da dissolução dos chamados Estados Gerais alteraram o sentido da própria soberania
que deixou de ser identificada com a pessoa do monarca para se identificar com o povo
representado pela assembleia deliberativa. Esse deslocamento em direção à ideia de soberania
popular é inaceitável para Maistre porque, como vimos, no pensamento do magistrado a
soberania tem origem divina e se confunde com a própria criação: “O primeiro homem foi rei
de seus filhos”, escreveu ele em suas anotações contra Rousseau, e “assim que as famílias
entraram em contato, elas precisaram de um soberano, e este soberano fez delas um povo ao
dar-lhes leis” (Maistre, 1996, p. 53, tradução nossa
20
).
A respeito de Maistre sempre coube o qualificativo de contraditório, mas sobre o sistema
representativo as contradições do seu discurso alcançam o limite do razoável. Por um lado, ele
se junta a Rousseau, seu adversário preferencial, recusando o exercício da soberania por meio
da representação: quando alguém diz que o povo é soberano, está dizendo que é ele soberano
sobre si mesmo, afirma o saboiano; porém, isso é enganoso, uma vez que “as pessoas que
comandam não são as mesmas que obedecem” (Maistre, 1996, p. 45, tradução nossa
21
). Por
outro, o magistrado diverge da ideia de representação do conservador Edmund Burke (2012),
sustentando que o artifício legal que concebia os parlamentares como representantes de toda a
nação em detrimento das suas respectivas províncias tinha como objetivo principal afastar os
representantes de seus eleitores (Maistre, 2010). E, finalmente, para completo espanto de seus
20
“The first man was king of his children…”; “… as soon as families came in contact, they needed a sovereign,
and this sovereign made them a people by giving them laws…”
21
“… the people that commands is not the people that obeys.”
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camaradas contrarrevolucionários, Maistre invoca as palavras de Babeuf, o “vil conspirador
jacobino”, líder radical da Conspiração dos Iguais, para quem o sistema representativo é um
sistema aterrador da felicidade do menor número, fundada na opressão da massa.(Maistre,
2010, p. 149-150, destaque no original).
A questão de fundo para Maistre nunca foi apenas o sistema representativo ou o caráter
republicano do governo, mas a possibilidade concreta de um povo tomar o destino em suas
mãos e constituir autonomamente as bases de suas relações políticas, econômicas e sociais,
estabelecendo sua própria forma de governo e os direitos e deveres que regem as relações dos
cidadãos entre si, destes com o governo e (talvez mais importante) do governo com os cidadãos.
Nos últimos anos do século das luzes, durante o curso da Revolução, o saboiano anotou em
seus cadernos:
Um dos grandes erros deste século é acreditar que a constituição política das
nações é uma obra puramente humana, e que alguém pode fazer uma
constituição como um relojoeiro faz um relógio. Isto é absolutamente falso,
mas o que é ainda mais falso é a crença que tamanha obra possa ser executada
por uma assembleia de homens (Maistre, 1996, p. 67, tradução nossa
22
).
Essa ideia foi retomada e desenvolvida nas Considerações Sobre a França à luz de seu
método de política experimental. Segundo Maistre (2010, p. 171), a história registra apenas
duas maneiras pelas quais se estabelecem “constituições livres”: ou elas se desenvolvem de
maneira quase imperceptível “pela reunião de um conjunto de circunstâncias fortuitas”; ou,
muito raramente, “têm um autor único”, homens muito especiais, escolhidos por deus e que
recebem dele os poderes necessários para executar uma tarefa de tamanha magnitude. Em
síntese, para o magistrado, ao contrário da aristocracia, o povo não pode estabelecer direitos
para si mesmo. Com apoio da política experimental, Maistre (2010, p. 172) sustenta que “os
direitos do povo partem frequentemente da concessão do Soberano” e, nesse caso, podem ser
localizados historicamente, mas os direitos essenciais do soberano e da aristocracia, diz ele,
“não têm data nem autores”.
Maistre recusa a tese de que a liberdade dos cidadãos possa ser garantida por um
conjunto de leis que regulam as relações sociais horizontais e limitam o âmbito das ações dos
governos. Isso quer dizer que o magistrado da Saboia nega o princípio daquilo que mais tarde
se convencionou chamar de Estado Democrático de Direito. O saboiano, entretanto, não
22
“One of the great errors of this century is to be believe that the political constitution of nations is a purely human
work, and that one can make a constitution as a clock maker makes a watch. This is quite false, but what is still
more false is the belief that this great work can be executed by an assembly of men.”
Osmir DOMBROWSKI
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questionava apenas o fato de que o Estado moderno fosse organizado como instrumento para
assegurar as liberdades e os direitos fundamentais dos cidadãos. Como observou Berlin (2005),
outros filósofos contemporâneos e posteriores a Maistre também criticaram a noção de
liberdade individual, mas o fizeram em defesa daquilo que consideravam a verdadeira
liberdade. Maistre, por seu lado, assume aberta e francamente que a liberdade não é um atributo
natural dos seres humanos. Para o magistrado, a liberdade “sempre foi um dom dos Reis”
(Maistre, 2010, p. 176).
A noção de liberdade de Maistre remete, pois, ao tipo de sociedade que vimos ser aquela
por ele considerada natural ou de origem divina: uma sociedade hierarquicamente organizada
e dirigida por um soberano, no interior da qual ser livre é ser exatamente aquilo que se deve ser,
fazer aquilo que deve ser feito e, em última instância, desejar apenas aquilo que deve ser
desejado. Uma sociedade que subsome as individualidades em uma totalidade maior e que
reserva para cada pessoa um papel específico, com direitos e deveres também específicos. O
magistrado não pode conceber o homem como sujeito de direitos universais que independem
de sua posição social. Para Maistre, o “maior erro” da Revolução foi proclamar os direitos do
homem como um ser genérico que transcende seus vínculos orgânicos:
A Constituição de 1795, como as suas antecedentes, é feita para o homem.
Ora, não existem homens no mundo. vi, na minha vida, Franceses, Italianos,
Russos etc.; sei mesmo, graças a Montesquieu, que se pode ser persa; mas,
quanto ao homem, declaro nunca o ter encontrado na minha vida; se existe,
não tenho conhecimento (Maistre, 2010, p. 180, destaque no original).
Considerações finais: um discurso que ainda fala ao nosso tempo
Como vimos acima, Maistre desafia o pensamento político dos modernos a partir de
uma base aparentemente moderna. Para ele, assim como nas ciências naturais não se pode
aceitar como verdadeiros postulados que não estejam fundamentados em evidências empíricas,
na política também não se pode admitir sistemas imaginados por metafísicos e que não foram
atestados pela experiência. E o manancial de onde o observador pode retirar todas as evidências
necessárias para fundamentar um bom sistema político é a história. Para o saboiano, a história
é a política experimental.
Com base em sua política experimental, Maistre nega toda a obra de construção teórica
do moderno Estado Democrático de Direito. Segundo o magistrado da Saboia, um povo não
pode democraticamente estabelecer direitos a si mesmo e constituir autonomamente as bases
de suas relações políticas, econômicas e sociais, porque ao longo da história, o que se pode ver
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é que os direitos dos povos surgem como concessão de um soberano. E os soberanos detém
direitos que não têm autoria e nem origem determinada.
De forma semelhante, a política experimental exercitada por Maistre leva-o a concluir
que a liberdade e a igualdade não são atributos inerentes aos seres humanos, posto que em todos
os momentos da história, segundo ele, a humanidade aparece vivendo em sociedades
organizadas hierarquicamente e com direitos e deveres específicos derivados do lugar ocupado
na organização social.
Entretanto, a história para Maistre, antes de ser a base para a política experimental, é o
registro da intervenção divina nas coisas terrenas. Segundo o saboiano, mesmo quando os
homens acreditam que estão agindo livremente, nada mais fazem do que desempenhar o papel
que lhes foi reservado pela providência divina. No desenrolar da história providencial, o povo
não é protagonista, mas um títere preso ao senhor do destino por cordões invisíveis. Assim, a
política experimental de Maistre, ao contrário do que postulam as ciências modernas, não se
presta à previsão, à antecipação e ao planejamento como instrumentos para um maior controle
sobre o destino. A ciência política do nobre saboiano não é orientada para a construção do
futuro, mas para a consagração de uma ordem transcendente; uma ordem hierárquica e rígida
que, em sua visão, embora tenha origem divina, pode ser mantida sob a égide da violência,
do carrasco e do castigo.
Na longa e detalhada introdução à edição em língua portuguesa de Considerações Sobre
a França, Rita Sacadura Fonseca (2010) afirma que os argumentos contrários à crença
racionalista no progresso e a denúncia da violência inerente ao reordenamento da sociedade por
meio de instrumentos legais, conferem um renovado interesse às ideias de Maistre. Em sua
tentativa de unir as diatribes maistrianas contra o artificialismo do ordenamento político,
jurídico e social revolucionário às reflexões críticas hodiernas sobre a confiança no poder da
razão humana e da ciência para produzir conhecimentos objetivos e indiscutíveis e a crença em
um sentido único - e positivo - do desenvolvimento histórico que marcaram o pensamento
político moderno, a autora se cala sobre o fato de que a crítica de Maistre ao racionalismo
iluminista atinge as bases do Estado Democrático de Direito, negando inclusive as ideias de
soberania popular e de Direitos Humanos. E, sobretudo, Fonseca parece ignorar o fato de que
se o Estado Moderno não pode prescindir do poder de coerção, no pensamento de Maistre a
violência permanece como um elemento fundamental, apenas assume um caráter místico-
religioso no lugar do racional-legal.
Osmir DOMBROWSKI
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Não obstante, Maistre não fala apenas aos reacionários do seu tempo empenhados na
restauração da monarquia e do Antigo Regime. Em verdade, ele fala para todos os atingidos e
deslocados pelo avanço da modernidade; para aqueles cujas vidas estavam sendo transformadas
pela generalização do sistema fabril, pelo êxodo rural e a urbanização acelerada, pela
desintegração das comunidades tradicionais e pelo aprofundamento das relações capitalistas.
Dirigida aos modernos, a fala de Maistre continua ecoando enquanto a modernidade
segue sua marcha irresistível profanando tudo que era sagrado e reduzindo a pó tudo que era
sólido. Como Marx e Engels (2008, p. 15) souberam ver, o capitalismo é obrigado a se
revolucionar permanentemente e antes que quaisquer relações tenham tempo de se consolidar,
fazendo com que “o abalo incessante de todo o sistema social, a insegurança e o movimento
permanentes” sejam as características que distinguem a época burguesa das demais. Nos
últimos tempos, o cenário de ruínas produzido pelo desenvolvimento do capitalismo tornou-se
ainda mais desolador. O neoliberalismo
23
com suas políticas de desregulação e liberação dos
mercados acelerou a concentração de renda nas mãos de poucos e gerou um enorme mercado
de trabalho precário e desprotegido que expõe os trabalhadores a todo tipo de vicissitudes
enquanto incentiva-os a buscar soluções individuais, reforçando o individualismo e a
competição em detrimento da proteção coletiva proporcionada pela política. Como resultado,
ao lado da negação da política, assistimos à formação de uma massa de pessoas em situação de
vulnerabilidade. São desempregados, subempregados, precarizados, uberizados e
empreendedores por conta própria que não encontram segurança no presente e não conseguem
vislumbrar qualquer possibilidade de melhora no futuro.
Trata-se de indivíduos abandonados à própria sorte, desprovidos da proteção social
fornecida pelo Estado e destituídos de vínculos comunitários sólidos e estáveis que
experimentam um sentimento de medo e uma incerteza permanentes e que, por isso, mais
facilmente se deixam seduzir por discursos que manipulam a insatisfação popular no interior
de um senso comum apolítico e antissistema que propõem soluções messiânicas baseadas na
restauração de uma ordem - que nunca é claramente definida - e dos valores tradicionais da
família, da religião e da pátria. A onda conservadora que avança pelo globo nesse início de
século XXI questionando as estruturas do Estado Democrático de Direito e o ideal da
universalização dos Direitos Humanos se propaga no interior dessa massa, e é no seio dela que,
23
Pensamos o neoliberalismo como David Harvey (2014, p. 12) para quem o neoliberalismo é uma teoria das
práticas político-econômicas que propõe a liberação das capacidades empreendedoras individuais no âmbito de
uma estrutura institucional marcada pela forte proteção ao direito a propriedade privada, a livres mercados e livre
comércio.
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passados mais de 200 anos, ideias como as de Joseph de Maistre encontram ainda vigorosos
receptores.
REFERÊNCIAS
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BURKE, E. Reflexões sobre a Revolução em França. Brasília: Ed. UnB, 1982.
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COMPAGNON, A. Os antimodernos: De Joseph de Maistre a Roland Barthes. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2011.
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HARVEY, D. O neoliberalismo: história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
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MAISTRE, J. Las Veladas de S. Petersburgo, ó Diálogos sobre el Gobierno Temporal de la
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MAISTRE, J. Against Rousseau: "On the State of Nature" and "On the Sovereignty of the
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MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. São Paulo: Expressão Popular,
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ROUSSEAU, J-J. Do contrato Social; Ensaio sobre a origem das línguas; Discurso sobre a
origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
(Os Pensadores)
Osmir DOMBROWSKI
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CRediT Author Statement
Reconhecimentos: Agradeço aos pareceristas da teoria & Pesquisa e, especialmente, ao
meu amigo Claudinei Aparecido Freitas da Silva pela leitura do manuscrito e pelos
comentários valiosos que muito me ajudaram.
Financiamento: Não há.
Conflitos de interesse: Não há conflitos de interesse
Aprovação ética: Trata-se de uma pesquisa teórica que não envolve pessoas.
Disponibilidade de dados e material: Trabalho exclusivamente teórico e bibliográfico.
Contribuições dos autores: Autoria única.
Processamento e editoração: Editora Ibero-Americana de Educação.
Revisão, formatação, normalização e tradução.